Em 1950 o então presidente da República Getúlio Vargas faz do período o resgate da cultura popular urbana no momento em que a rádio se projetava como meio de comunicação em massa, espaço de reprodução e divulgação dessa "nova cultura". A rádio é um fenômeno social no Brasil, assim como no mundo ocidentalizado.
O Estado Novo varguista absorvia a música e a folia popular, garantia os trilhos e exigia que se andasse na linha, era um Estado disciplinador e musical, assim Villa Lobos regia as crianças durante festejos cívicos, impunha contar a grandiosidade e as coisas belas; o samba exaltação, cujo melhor exemplo foi Aquarela do Brasil de Ari Barroso, um exemplo claro de interiorização desta ditadura pelos artistas.
"Os meios de comunicação de massas funcionam como uma espécie de espelho de identificação dos grupos para os quais eles se projetam" (Michel Maffesoli).
Sob forte influência dos arranjos do jazz ( para entender bem os acontecimentos, sugiro a leitura, neste mesmo blog das Mudanças Culturais na I e II Guerra Mundial), Villa Lobos divulgava seu estilo musical cantando em acordes e letras, as belezas do Brasil.
No âmbito da história mais recente, fez-se um corte radical entre o velho Brasil desunido, dominado por latifúndios e oligarquias e o Brasil que nasce com a Revolução. O Estado Novo teria realizado os objetivos revolucionários, promovendo atravéz da busca de novas raízes, da integração nacional, de uma ordem não dilacerada pelas disputas partidárias, a entrada do pais em tempos modernos, ou seja, a Revolução de 30 e a consolidação de seus propósitos, passaram a ser simbolizados como marco zero do nosso devir histórico.
Era a cultura mestiça que nos anos 30 despontava como representação oficial da Nação.
Como todo nacionalismo, cria-se símbolos ambivalentes onde interesses privados assumem sentidos públicos. Exemplo do mestiço usado como símbolo da Nação está a feijoada e o samba, que passa a ser exaltado como expressão de brasilidade. Basta lembrar que o Samba-Enredo foi oficializado em 1935 e em 1937 , obrigatóriamente o tema deveria ser histórico.
Para José Murillo de Carvalho "Nunca um governo adotou uma postura oficial da valorização do popular sobre o erudito, do povo sobre a elite. O modelo de Brasil não estava mais na Europa, mas em nossa própria história, nossas tradições, nosso povo e patrimônio".
Interessante pensar que este nacionalismo, visando a propaganda, foi desenvolvido pelo nazifascismo europeu e recuperado por Vargas e Perón (que chegaram a ser considerados fascistas). Este método legitimava-se pela tentativa de reformular mecanismos de controle social considerados inadequados para os novos tempos, canalizando as massas na direção imposta pelo novo regime; o temor a oposição acaba com a pluralidade da vida social, como experiência democrática e impõe a construção de uma sociedade unida e harmônica (Maria Helena Capelato).
No período do Regime Militar, mais especificamente no governo de Faria Lima, São Paulo torna-se a sede do milagre brasileiro. Para quem não se lembra, devido a Guerra Fria entre Estados Unidos e URSS, os americanos emprestavam dinheiro à rodo para os paises que se desenvolviam economicamente, visando introduzir suas multinacionais e manter os paises amarrados a sua disciplina, evitando a entrada do comunismo. O período ficou conhecido como o milagre econômico, pois fortíssimos investimentos eram aplicados no pais com novas indústrias e construções, porém gerou, anos mais tarde, uma inflação monstruosa que deixou o pais individado por até pouco tempo atrás.
O perfil paulistano da "gente laboriosa" e "cidade que não pode parar", trás um sentido de Nação, como se as projeções da cidade fossem modelo de Nação e a verticalização de São Paulo também torna-se traço dessa característica. A imagem de "cidade do progresso" fundamenta tanto o caráter congratulatório, como constrói a identidade sua e de seus habitantes. O tempo é medido pelo trabalho, onde um intervalo menor produz cada vez mais, portanto, o jeito de ser paulistano é tecido pela lógica trabalho/ produção = pressa.
Quando o passado é encenado num ato, como uma atividade cultural, as lembranças que esse ato evoca assumem o caráter de tradição cultural e neste alimentam a memória social inserindo-se nas cerimônias comemorativas. Neste contexto, o meio usado foram as comemorações do IV Centenário da cidade.
Como lembra Michel Certeau "Em nossa sociedade ausência de trabalho significa absurdo; deve-se eliminá-la para que prossiga o discurso que incansávelmente articula as tarefas e constrói o relato ocidental do " há sempre alguma coisa a fazer".
Em 1950 fabricava-se quase tudo em Sampa, o que levou a uma migração em massa de nordestinos para a cidade, principalmente para trabalharem na construção civil, basta saber que de 1940 a 1960 a cidade tanto em habitantes quanto em construção e cultura cresceu o dobro.
Os imigrantes italianos que já estavam aqui há algumas gerações, conseguiam estudar e se tornar pequenos e médios empresários, já os negros, apesar de uma leve melhora na condição social, ainda eram vistos amalgamados a escravidão, com oportunidades reais, mas remotas de ascenção econômica. As mulheres , antes à margem da economia, agora se encontravam em fábricas ou como costureiras ou ainda manicures, inseridas no operariádo paulistano.
As contradições eram vistas na periferia , onde antes moradores do centro bem servidos de equipamentos urbanos, agora se encontravam na região periférica da cidade em lotes sem água, sem luz e com ruas intransitáveis, empurrados pelo crescimento economico, que exigia maior espaço do centro econômico e comercial, colocando o próprio operariádo à margem da cidade. Nascia a periferia.
Adoniran, o artista
Filho de imigrantes italianos, João Rubinato nasceu em Valinhos em 1910 e no início dos anos 30 se muda para São Paulo. Trabalhou em várias empresas, como operário, garçon, mecânico, mas problemas pulmonares o afastaram. Cresceu nas ruas da cidade ouvindo vozes, sotaques e jeitos das pessoas com quem se relacionava.
Sua poética está justamente na inventabilidade de um certo jeito de ser paulistano. Sob pseudônimo de Adoniram Barbosa o artista se inicia como radioator e compositor de inúmeros sambas. Por 10 anos trabalhou na radioteca de Record, cujo seu personagem era Charutinho no programa Histórias das Malocas. Produz uma instigante crônica da cidade , busca retratá-la no instante em que o processo de industrialização e a formação de uma sociedade de massas se intensifica no pais e o cenário paulistano é o símbolo desta transformação.
Segundo Hannah Arendt, o conceito de biografia é a história da vida que integra o conjunto de atos e palavras de uma pessoa, então a história de vida de Adoniran se confunde com sua obra.
A pessoa de João Rubinato narra o que o artista Adoniran vê nas mudanças da metróple, e fala por seu grupo, na visão dos excluídos, então, apesar de parecer antigo é moderno, pois trata-se de vozes de pessoas que se identificam com a São Paulo em algum período da história. O artista foi considerado por críticos como verdadeiro "retratista do cotidiano"e seu personagem Charutinho, no programa, se mostra o avesso do discurso oficial autocongratulatório que legitimava "nossa gente laboriosa".
O espaço da metrópole reflete o presente construtivista e produtivo, assim, a paisagem urbana se concebe num espaço homogêneo e rápido de circulação. O individual, qualitativo e heterogêneo são excluídos do espaço urbano, assim essse espaço não se oferece como suporte do passado, pois está voltado para o futuro.
"A fusão de Adoniran com os Demônios da Garoa e a percepção dos sons das ruas da cidade deu a obra a fotografia de Adoniran. Uma obra não é somente descritiva, é refletiva também, cheia de idéias sui generis de observação e de conclusões que ficam à beira da trajédia ou da comédia" (Zuza Homem de Melo).
Um artista inventa, antes e mais nada, sua própria personalidade, e ao fazer isso, Adoniran exprime toda a realidade paulistana numa polifonia de vozes.
Em Sampa, a sátira era social e não política como no Rio de Janeiro.
A Record queria atingir as camadas populares e Histórias das Malocas era como se fosse novela, com seu público fiél. O programa de rádio ironizava valores da ordem burguesa, permeado por um idealismo romântico. De um lado a metáfora do trabalho, da opressão, do peso de uma vida regrada pelo positivismo e de outro lado como metáfora do ócio, da liberdade, configurando-se como oposição aos padróes instituídos. Uma microresistência.
Se pensarmos que no momento a cultura dominante promete as benesses da sociedade de consumo e portanto da abundância, a maloca representa, antes de mais nada, o contraste visível e concreto a essa civilização moderna.
"Maloca onde a riqueza é...um jacá de vaziesa..., uma cesta de fome...e um pacote de gemido" (trecho do programa)
Para a autora Mirian Goldfeder "a favela é o último reduto da solidariedade social, ao mesmo tempo em que se cria um espaço para a discussão do antitrabalhismo, filosofia básica assumida por seus habitantes". Uma reflexão própria; será que esse (pré) conceito não ajuda a legitimar o mito que na favela só tem vagabundo ?
A valorização de uma microsociedade, de suas formas e valores romperia com as regras definidas pela ética dominante. Em seu fazer artístico a escrita ou as letras institucionalizadas não são relevantes, na medida que um cancionista produz a fala ao canto, mas não podendo prescindir a cultura oral, das representações do mundo que entre outros suportes, fixam em narrativas orais.
Noel Rosa disse, "O samba não se aprende em escolas como reprodução de conhecimento (uma alusão as escolas tradicionais). Ele é sentido. Quem vai a escola de samba não busca o que já não possua. O samba habita aquele que o deseja, não nasce nem no morro nem na cidade"
Certeau e Giard dizem que " devemos considerar a cultura como ela é praticada, não naquilo que é valorizado pela representação oficial, é a oralidade que junto com a criatividade, prática e os atos da vida cotidiana que a sustentam e a organizam. Isto é cultura popular, uma (re)apropriação da ordem dominante".
Dentre as várias músicas de Adoniran que fizeram sucesso está: Saudosa Maloca, Trem das Onze, Iracema, Samba do Arnesto, Um samba no bexiga (esse samba deixa claro as raíses italianas do bairro, quando fala de um bate boca que aconteceu no bar em que "voava a pizza junto com as bracholas"), todas deixam claro o momento em que a música quer retratar, e o grupo social predominante que o artista pertence.
Em minhas pesquisas sobre história cultural, me deparei com uma frase de Michel Foucault em que ele diz; "A representação social não é uma cópia do real, mas uma construção feita à partir dela".
Acho que esta frase consegue explicar com exatidão como entender a representação social.
Aqui o link de Adoniran e Elis Regina cantando em um bar no bairro do Bexiga em 1978.
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