22 de jan. de 2009

Sobre Sandra Jatahy Pesavento

FONTE: ZEROHORA
Dia 10/01/2009
dianamcorso@gmail.comDIANA LICHTENSTEIN

Sandra teve um problema de saúde que a condenou a cem dias de reclusão em um lugar onde não havia janelas, espelhos, nem relógio. A luz estava permanentemente acesa, mexiam constantemente em seu corpo e não se conversava com ela, pois estava “desligada”.
Esse lugar chama-se UTI. Sandra Jatahy Pesavento é historiadora. Referências, para ela, são fundamentais. Por isso, um lugar assim certamente lhe é particularmente infernal, mas ela encontrou dois refúgios. Em primeiro lugar, o empenho de seus filhos e marido em falar com ela, contar-lhe coisas, cantar para ela, mostrar a ecografia do futuro neto, mesmo quando ela parecia estar em outra dimensão; em segundo lugar, as viagens a um território de sonhos ocorridas durante o coma.
Foi sobre essas experiências oníricas que ela aceitou conversar conosco.
Sandra não tem memória de dor, mas lembra que escutou quando o médico disse à família que ela poderia ter apenas mais algumas horas de vida. Já dos sonhos ela lembra bem. Sandra os chamou de “meus sonhos do lado de lá”, mas não se façam deduções místicas de suas palavras, porque ela não as fez.
A historiadora relata que durante o período de UTI teve uma experiência onírica diferente de tudo o que vivera antes e depois. Os tais “sonhos do lado de lá” eram histórias malucas, como costumam ser nossas aventuras imaginárias noturnas. Eram sempre agradáveis e ocorriam em sequência, constituindo verdadeiras sagas. Por vezes, ela despertava ou tinha momentos de consciência, para logo submergir novamente nessas histórias, que esperavam seu retorno para continuar.
Em um desses episódios, ela encontra-se na Floresta Amazônica, trabalhando como seringueira, tirando látex de uma árvore. Existe melhor forma de escapar da cruel realidade das seringas com agulhas que a espetavam, das luvas de látex que a manipulavam? Nesse episódio, a partir dos restos diurnos da realidade insuportável, Sandra construiu um território imaginário onde a tortura do corpo se abstraía em aventuras.– Esses sonhos eram a minha casa. Um lar para onde seus pensamentos se mudavam, enquanto o corpo enfraquecido era refém da cama e dos tubos.O território onírico de Sandra dividia-se em dois tipos de lugares: havia os sonhos que tinham um tom de verossimilhança, construídos com uma geografia delirante, fruto das muitas viagens que ela fez, e aqueles situados em “lugares imaginosos”, como ela os chamou.
Exemplo do primeiro tipo é uma baía circular com um albergue à beira-mar, em Roma, lugar que na verdade não existe. Mas é no segundo tipo, nos lugares imaginosos, que a cena de sonhos revela todo seu encanto. Havia um mundo de trevas, onde a luz emanava exclusivamente das pessoas, uma excelente alternativa para quem se encontrava num ambiente permanentemente iluminado, cuja única fonte de afeto provinha dos minutos permitidos para a visita dos seres queridos. À luz fria da UTI, Sandra contrapôs o aconchego da escuridão uterina, iluminada pelos seus amores. Esse lugar é aquático, e lá ela encontra a filha grávida e o genro, que é exímio nadador. Para que o absurdo fique mais lúdico, como costuma acontecer nos sonhos, eles passavam a se dedicar à caça de tigres-marinhos, cujos filés estariam em alta cotação. O genro passeia sobre uma prancha com filés de tigres-marinhos, que são pedaços de filé com caras de tigres mesmo.Para a sorte da historiadora doente, uma figura feminina literária compareceu aos sonhos imaginosos para inseri-la num clã de mulheres fortes. Uma amiga historiadora, que na juventude foi atriz, encarna a Fada Titânia, personagem de Shakespeare responsável por mudar os destinos dos amantes adormecidos em Sonho de uma Noite de Verão.
Num tom grave, ela dizia que tinha que revelar algo relativo à família do marido:– Eles são do Clã do Urso! O Clã do Urso, ao qual Sandra teria ingressado ao casar-se, seria composto de mulheres corajosas – um clã fechado, do qual o urso seria um segredo, um totem.
Ilustrando essa evocação, desce de um barco viking uma personagem que pertenceria à família materna do marido, uma tal de Ana Teresa. Estaria prometida a um dos agregados do clã, num casamento que visava solidificar negócios de família. O lugar aonde o barco chegava, era uma mistura da praia catarinense onde a família tem casa, a Barra de Ibiraquera, com o imóvel de Porto Alegre onde funciona a empresa do filho. Ainda em sonhos, Sandra tenta contar a boa nova à neta, a mais jovem integrante do Clã do Urso, enquanto alguém tenta impedi-la:– Não ouve tua vó, isso é bruxaria. De feiticeiras, foram acusadas algumas das fascinantes personagens do novo livro de Sandra, Os Sete Pecados da Capital, com lançamento previsto para março. De mulheres fortes, certamente é o clã que ela está em condições de consolidar depois de cem dias de UTI.– Minha cabeça me salvou! – decreta, grata às aventuras oníricas que lhe permitiram atravessar o horror da doença. Mas isso não é possibilidade que se abra do dia para a noite. Para sonhar, é preciso treino, e Sandra trabalha nisso desde pequena. Ela tinha três amigos imaginários: uma menina chamada Doroti, o soldado Caxias e o guarda Fontoura – parceiros de infância da única filha de dois bons contadores de histórias. Seus pais aceitaram o trio fantástico sem questionar a pequena sobre a realidade das personagens. Em sua vida, a imaginação teve trânsito livre desde o começo. Isso talvez não tenha lhe salvado a vida, mas certamente salvou sua cabeça. Sonhos são construções feitas a partir de memórias, restos diurnos, desejos confessos e outros inadmissíveis. Neles, toda noite, repousamos da dura tarefa de existir. As aventuras oníricas de Sandra durante sua permanência na UTI beberam da mesma fonte. Frente à realidade insuportável da miséria do corpo, a imaginação fértil da menina transmutada em historiadora encontrou recursos para sobreviver. Seria injusto com o rico acervo de memórias e com a criatividade dessa mulher atribuir sua experiência a fatores transcendentais. A riqueza de recursos imaginários constituída ao longo de uma vida é muito mais do que lembranças de diversão e lazer, é uma fonte cujas águas, como ela disse, salvam. Admitir isso é reconhecer a importância da literatura, do cinema, das viagens e, principalmente, da valorização dos lugares imaginosos habitados pelas crianças. Muitos anos antes da doença, Sandra tinha um sonho repetitivo, no qual se mudava para um novo apartamento com sua família. O imóvel dos seus sonhos ficava no lugar onde havia uma casa que ela conhecia. Tempo depois, e já fora do sonho, no mesmo terreno dessa casa foi construído um prédio. É o prédio no qual ela mora hoje. Sandra comprou o lugar com o qual ela sonhava sistematicamente. Como se vê, ela já havia aprendido a habitar uma casa de sonhos.
***Sandra: Meu filho falava comigo. Quando chegava à UTI, ele ligava a TV, fazia considerações. Passava alguém e dizia: “Por que estás falando com a tua mãe? Ela não está ouvindo nada. Ela está em coma”. O Rodrigo respondia: “Ouve sim. Ela é minha mãe. Eu sei que ela está me ouvindo”. E, de fato, eu ouvia.
Diana: Você ouviu esse diálogo?
Sandra: Ouvi.
Diana: E não conseguia dizer nada? Não conseguia fazer um sinal que dissesse: “Deixa ele falar, que é bom”?
Sandra: Eu não conseguia. Eu não tinha forças.***Sandra: Dentro da UTI, eu tinha muito cansaço, muito sono. O dia é sempre igual. E as horas não passam. Não há janelas, nem relógio. Quando te levam para fazer uma radiografia...
Diana: É um programa.
Sandra: É um programa. Alguma coisa muda aquela rotina terrível.
***Sandra: Até aí são lamentações de quem passou cem dias num hospital. O estranhíssimo é o que começou dentro da UTI. Eu tinha muitos sonhos. E os sonhos continuavam como se fossem uma novela.
Diana: Não tinha esse hábito antes? Muita gente sonha em sequência.
Sandra: Nunca tinha me acontecido. E eram sonhos sempre maravilhosos, todos eles dentro de lógicas de coisas que eu gosto de fazer. As viagens, por exemplo, eram uma constante. Estive na Grécia, em Roma, na Toscana...
Diana: Em lugares que você já conhecia?
Sandra: E em lugares que eu não conhecia também.Diana: Lugares que você gostaria de visitar. Enfim, você fez os passeios do jeito que pôde.Sandra: Exatamente. E, mesmo agora, lembro de tudo. Lembro do vinho que eu bebia.
Diana: Eram sonhos gustativos?Sandra: Visuais, gustativos, olfativos. Não são assim todos os sonhos?
Diana: Não. As pessoas têm sonhos bem diferentes.
***Sandra: Havia o mundo da luz. Era ali que apareciam os vikings... Que loucura tudo isso... (surpresa com as próprias lembranças)
Diana: É lindo.
Sandra: Do navio dos vikings, desce uma mulher que se chama Ana Teresa. Não é ninguém que eu conheça. É uma jovem. Está prometida para o Clã do Urso. Ela é de uma força extraordinária. Tem condições de gerir o clã.
***Sandra: Às vezes, eu sonhava que estava saindo do hospital. Na rua, era um mundo de trevas. A luz se resumia a uma luz que emanava das próprias pessoas. Nesse mundo, eu encontrava minha filha e meu genro. Eu olhava em direção ao horizonte e tudo era breu. Eu perguntava para ela: “Ana Paula, por que tu estás aqui?”. Parecia algo para as bandas do Pólo Norte. Ela me dizia: “Mãe, estamos nos dedicando à produção e à caça de tigres-marinhos. Os tigres-marinhos estão com uma cotação altíssima no mercado”. Nessa hora, meu genro passava com uma prancha cheia de filés de tigres-marinhos.
Diana: Que cara esses bichos tinham? Um leão-marinho não tem cara de leão. Esses bichos dos teus sonhos, tinham cara de quê?
Sandra: Acho que tinham cara de tigre mesmo.
Me chamou atenção o fato de a luz vir de dentro das pessoas.